segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

A FARSA E A TRAGÉDIA NA FACULDADE ANHANGUERA



Prof. Richard Martins Kowalski
Há pelo menos 2 anos, e sobretudo após o “caso Geisy”, convivemos com os boatos de que a UNIBAN seria vendida. Alguns professores, os mais otimistas, supunham que isso seria algo impossível de acontecer. Acreditavam todos que nenhuma instituição no país teria capital suficiente para embarcar na aventura de comprar uma universidade à beira do colapso financeiro e com a imagem tão (justamente) deteriorada. Acreditávamos que ela poderia falir, mas não que seria comprada. Lidamos com esses boatos, que surgiam ocasionalmente, com a incredulidade saudável de quem entende a lógica dos boatos.
Seguindo uma exigência do Ministério da Educação (MEC), que determina uma certa porcentagem de professores “mestres” ou “doutores”, bem como de um regime de trabalho em tempo integral (T.I/40 horas) para o caso de Universidades (a legislação é diferente no que diz respeito a Faculdades),  as despesas da UNIBAN com a folha de pagamento subiram drasticamente. O fantasma da falência reforçou os boatos acerca da venda da universidade, boatos que, ao se tornarem do conhecimento do reitor foram veementemente negados. Os coordenadores acadêmicos, pedagógicos e os presidentes de instituto se esforçaram para convencer os professores de uma informação na qual muitos deles sequer acreditava. Aprendemos, a partir daí, que na UNIBAN (bem como em qualquer organização), se o boato fosse positivo para os funcionários (ou para os alunos) deveria ser mentira; mas se ele fosse negativo, então certamente seria verdadeiro. E a lógica subjacente a esse raciocínio era das mais simples: não há necessidade de se mentir sobre uma informação positiva. Pouco tempo depois todos os “presidentes” de instituto foram demitidos junto com muitos funcionários administrativos. Não sabíamos ainda, mas era a reestruturação inicial antes da venda.
Então, em um final de semana em setembro, ficamos sabendo (pelos jornais) da compra da UNIBAN pela Anhanguera. Muitos professores imaginaram que isso representaria uma mudança para melhor, tanto na qualidade do ensino, quanto no tratamento dispensado aos professores. Como a UNIBAN havia convertido a “iniciação científica” no indigesto festival pirotécnico do “fórum universitário”, imaginamos uma política de incentivo à pesquisa que fosse séria. Esperamos também um aumento significativo no número de bolsas de estudos para os alunos ingressantes, bem como mudanças radicais nas formas de avaliação (criticada por alunos e professores).
A sinalização da Anhanguera, no início, foi positiva. Recebemos por e-mail manuais com orientações aos alunos afirmando que as mudanças seriam para melhor e que NÃO haveriam demissões em massa. Apesar das discrepâncias entre os salários dos professores da UNIBAN e da Anhanguera, essa hipótese nunca foi considerada seriamente, afinal, imaginamos que seria implausível demissões em larga escala. No máximo seríamos instados a negociar nossos salários. Nesse momento ainda imaginávamos que a Anhanguera quisesse deixar de ser uma Faculdade, para com a aquisição da UNIBAN, ascender ao status de Universidade.
A ilusão durou pouco. Rapidamente soubemos das suspensões das bolsas de estudo que podiam ser oferecidas pelos professores, do aumento nas mensalidades, da extinção do cargo de T.I (tempo integral/40 horas) e da intenção da Anhanguera em permanecer como Faculdade. Tudo isso aconteceu seguindo uma outra “mutação” que deveria nos ter servido de alerta: a Anhanguera referia-se a si mesma não como uma Universidade (o que já constituía um problema), mas como uma “empresa”; seus professores eram agora chamados de “colaboradores” e seus alunos de “clientes”. No início de novembro os coordenadores pedagógicos/acadêmicos participaram de um “treinamento” em uma das cidades do interior de São Paulo onde a Anhanguera atua, momento em que (dentre outras coisas) a estrutura da instituição lhes foi apresentada. Eles retornaram otimistas e cheios de planos e novidades para contar. Em menos de 2 semanas praticamente todos eles seriam demitidos sem aviso.
Surgiu então, na UNIBAN, um novo boato: para “cortar gastos” a Anhanguera demitiria quase todos os professores mestres e doutores. Violando a lógica do “se for ruim, não deve ser boato”, imaginamos que isso seria não só impossível quanto ilegal, imoral e contraproducente. Quando o absurdo é grande, a razão tem alguma dificuldade para processar a informação. Em seguida, ouvimos dizer que não só mestres e doutores seriam demitidos, como aqueles doutores que permanecessem empregados teriam uma “cota” de aulas: no máximo 3 aulas semanais, o que representaria, na prática, uma redução de cerca de 80% no salário. Ou seja, na prática eles apenas “alugariam” seus títulos para que a Anhanguera pudesse mostrá-los ao MEC. Contudo, desta vez o boato durou pouco tempo: em menos de 3 semanas o mais insano dos cenários provou ser verdadeiro. Faltando poucos dias para as festas do final do ano, quando os alunos já desfrutavam de suas férias, as tais reestruturações assumiram sua verdadeira face: demissões em massa. O momento foi escolhido com a inteligência empresarial típica; depois que os professores corrigiram as provas finais e os alunos não tinham mais como reagir por conta das férias. Muitos só saberão das novidades em 2012.
Enquanto tudo isso acontecia com a UNIBAN, a lógica empresarial da Anhanguera fazia estragos em outra frente. O colégio Salete, recém adquirido, vivia seu próprio drama. Em uma reunião com os empresários da Anhanguera, pais, alunos e professores foram informados de que o colégio estaria “encerrando suas atividades”. Todos os professores (muitos deles com filhos estudando no Salete) foram demitidos imediatamente e os alunos, muitos deles bolsistas, ficariam sem suas bolsas de estudo e sem escola. Essa foi mais uma das “reestruturações” empreendidas pela nova gestão. Logo em seguida os alunos foram informados, no final do semestre, que a unidade Rudge seria desativada (ao que parece, ela já havia sido vendida) e que eles teriam que ser remanejados para outras unidades. Tudo isto estava sendo feito, naturalmente, em “benefício” dos alunos. E como há males que não conseguimos identificar a qual bem eles estariam a serviço, os alunos ficaram sem entender e a Anhanguera achou que não havia qualquer necessidade de fornecer maiores explicações. O ônus das reestruturações começava a ser pago pelos alunos.
Mas como as farsas duram mais tempo que as tragédias, a fase das mentiras não havia ainda chegado ao fim. Alguns alunos, geralmente os melhores e mais próximos de seus professores ficaram sabendo imediatamente dos últimos acontecimentos e esboçaram alguma reação, que mesmo tímida, precisava ser neutralizada imediatamente. Essa contra-ofensiva ficou a cargo dos empresários da Anhanguera e dos poucos professores sobreviventes, agora alçados à nova categoria de “coordenadores de curso”. Esses coordenadores recém empossados entraram em contato com alguns desses alunos para impedir que um protesto na unidade Osasco acontecesse. O argumento terrorista deles foi o de que “isso seria pior para os alunos” e talvez “o resto dos professores fosse demitido”. Mas mesmo assim, decidiram barganhar da forma mais espúria: ofereceram, como sinal de boa vontade aos alunos, retirar o nome de um dos professores da “lista” de demitidos. Marcada uma reunião com os representantes de sala e outros alunos, os dirigentes da empresa tentaram explicar o inexplicável. O problema inicial foi o de qualquer empresa que utiliza o eufemismo “reestruturação” em lugar de “demissão em massa”: ela precisa distorcer a realidade e alterar o significado dos termos para conseguir atribuir algum sentido àquilo que não faz sentido algum.
Como o primeiro ato dessa comédia toda não surtiu o efeito esperado nos espectadores, os empresários da Anhanguera decidiram apelar, novamente, para as explicações calcadas nos “benefícios”, para os alunos, dessa “reestruturação”. Os alunos presentes tiveram que escutar todo o malabarismo verbal da empresa tentando provar logicamente que professores “especialistas” –  pasmem – seriam superiores a professores “mestres” e “doutores”, e que tal mudança seria um “avanço”, uma melhoria significativa para o processo de ensino-aprendizagem. Fico imaginando... como a USP, a Unicamp ou a UNESP não pensaram nisso antes? Demitir todos os mestres e doutores para melhorar a qualidade do ensino foi mesmo a contribuição mais original da organização Anhanguera à sociologia da educação no século XXI. Na prática eles levaram essa lógica às últimas conseqüências, mas no site da instituição a propaganda de muitos cursos prega a existência de 70% (ou mais) de mestres e doutores no quadro docente. Se os especialistas são tão “superiores”, por que usar o alto índice de mestres e doutores como propaganda no site? Propaganda enganosa, naturalmente, e que mostra bem as incoerências no discurso da empresa Anhanguera.
Que alguns dos alunos presentes, mais preocupados com o valor das mensalidades do que com a qualidade do ensino tivessem aceitado tal argumento, seria compreensível. Sabemos da deficiência de muito desses alunos, de sua falta de treinamento/interesse político (que em parte podemos atribuir à ausência de “centros acadêmicos”), e de suas relações de “clientes”, de inimigos pagantes de seus professores – considerados seus inimigos pagos – por estarem estes entre a “empresa” e os clientes/alunos. Sabemos que muitos alunos percebem seus professores como o elemento intermediário entre a empresa (que tem interesse em distribuir diplomas) e eles mesmos (interessados em adquirir esses diplomas), intermediário esse cujo único (e sinistro) interesse residiria em “atrapalhar” essa negociação financeira. No caso desses alunos, seria até compreensível que deixassem de notar (por estarem mais interessados no valor das mensalidades de seus diplomas) o argumento delirante da Anhanguera. Mas não podemos dizer o mesmo dos novos “coordenadores”, responsáveis pela demissão de seus próprios colegas de trabalho enquanto subscreviam as diretrizes da nova empresa.
A resposta cínica de que “quem tem família para sustentar não pode ser dar o luxo de ter princípios” sempre caminhou, em todos os tempos, através da trilha aberta pela capitulação moral. E em tempos sombrios (como nos mostrou o intervalo monstruoso do nazismo) suas conseqüências sempre foram as mais devastadoras. Enfim, alguns desses, os mais sádicos (porque eles existem em todos os lugares) devem ter se sentido muito a vontade com essa nova lógica, perversa em sua origem. Outros devem ter “sofrido” com toda essa situação, mas não existe nada mais forte (e demasiadamente humano) do que o poder da “racionalização”. Em pouco tempo, mesmo estes, para conseguirem lidar com o conflito moral, passaram a acreditar (mais ou menos sinceramente) no discurso empresarial da Anhanguera. Imagino que dentre estes (descontados os sádicos) estão todos aqueles que sempre se mantiveram otimistas com o rumo das coisas. Incluídos aí, devem estar, certamente, muitos professores das áreas de “administração” e “psicologia organizacional”, sempre tão alinhados com o discurso neoliberal. Estes, muito habituados a utilizarem o termo “reestruturação” em suas aulas, estejam agora desempregados ou não, terão uma oportunidade valiosa para aplicar suas teorias aos novos rumos da educação superior no país.
Mas este manifesto não surgiu para protestar contra as demissões empreendidas por empresários disfarçados de educadores. Alguns de nós, dentre os quais penso me incluir, nunca foram ingênuos ao ponto de acreditarem que as instituições privadas de ensino superior constituíssem “centros de excelência acadêmica”. Nunca vesti (e agora devo falar apenas por mim) a camisa da empresa. Nunca achei que qualquer empresa representasse uma “família” ou que fossemos, nós professores, indispensáveis ou insubstituíveis. Esse tipo de crença pode até ser uma prerrogativa da docência superior pública; certamente não da privada.
Por conta dessa confusão, muitos professores acharam (e ainda acham) absolutamente irracional a atitude da Anhanguera. Particularmente, não vejo nada de irracional em todo esse processo. Se entendermos “racionalidade” como a adequação entre meios e fins, nada há aí que possamos considerar irracional. A perplexidade surge não do desconhecimento dessa fórmula que define a racionalidade, mas do equívoco na compreensão do fim visado. Se aceitarmos o discurso ideológico da Anhanguera de que o “fim” a que se destina tais reestruturações seria a melhoria na formação dos alunos/clientes, então o “meio” escolhido para se atingir esse fim seria naturalmente irracional. Contudo, se rejeitarmos esse argumento e substituirmos o fim alegado pelo verdadeiro “fim” visado – dinheiro, lucro – então toda a equação voltaria a fazer sentido e aquilo que parecia irracional revelaria uma racionalidade evidente. Se a Anhanguera admitisse suas reais intenções e tentasse argumentar a partir daí, então o seu discurso pareceria menos delirante.
Tendo isso em conta, esse manifesto visa alertar a todos acerca do perigo de permitirmos que a educação superior opere segundo a mesma racionalidade das instituições financeiras. Em outros termos, se a política do McDonald’s é racional para vender lanches, não pode ser considerada racional (se tivermos em mente uma educação de qualidade) quanto ao mercado de diplomas. A educação como um direito do cidadão a ser assegurado pelo Estado deveria escapar a essa política, afinal, se as faculdades particulares proliferaram no vácuo gerado pela inoperância do Estado em gerir a educação superior pública, o Ministério da Educação deveria, pelo menos, fiscalizar com mais empenho os abusos provocados por essa inoperância.
Um exemplo cabal dessa falta de uma regulamentação está sendo a “festa” do ensino à distância (EAD). Em sua origem, a idéia de se “democratizar a informação”, atingindo estudantes, professores e profissionais das mais diversas áreas em remotas cidades do interior do Nordeste ou da Amazônia nos pareceu muito apropriada. Porém, com o passar do tempo, as faculdades particulares perverteram essa boa idéia (sem qualquer oposição do MEC), transformando-a em uma forma fácil e barata de formar alunos residentes nos grandes centros urbanos. Assim, o EAD perdeu sua orientação “social” inicial para se converter em uma verdadeira mina de ouro para o ensino superior privado. Cursos de graduação e pós-graduação à distancia proliferaram por todo o país com o consentimento do Ministério da Educação, que repassou à iniciativa privada sua responsabilidade por atender às demandas das populações carentes e distantes dos grandes centros urbanos.
E os professores que, por má fé ou estrabismo intelectual não perceberam o absurdo da proliferação dos cursos EAD, argumentando ser impossível barrar o novo “espírito do tempo” amargam hoje suas demissões e mesmo assim não conseguem notar todas as implicações da catástrofe. Tais professores que sucumbiram ao discurso ideológico do ensino à distância (confundindo aquilo que “é” com aquilo que “deve ser”) podem contemplar agora as conseqüências lógicas de uma prática condenada ao sucesso, mas condição da desgraça.