terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A QUESTÃO DOS CURSINHOS POPULARES: PREGANDO REALIDADES... OU ILUSÕES?



Há muito tempo venho observando o crescimento da iniciativa de cursinhos populares no mesmo rastro da proliferação de faculdades particulares. E, com todos sabem, tenho verdadeiro horror à lógica de mercado dessas faculdades.

Uma das primeiras iniciativas em São Paulo (e também no país) foi o Cursinho da Poli, criado em 1987 por um grupo de alunos da Escola Politécnica da USP (a famosa “Poli”) e que atuou no interior do campus (no Butantã) até 1996 e tem hoje sua principal sede na Lapa. Hoje, infelizmente, não podemos mais chamar o Cursinho da Poli de uma verdadeira iniciativa voltada à população de baixa renda, posto que a mensalidade cobrada pelo cursinho se aproxima dos preços promocionais de escolas como Objetivo e Anglo.

Outro pioneiro foi o Cursinho do CRUSP (o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo), um projeto social da Associação de Educadores da USP (Aeusp) que também cobra mensalidade. Não existe processo seletivo, mas o número de vagas é limitado. O cursinho da FEA (a Faculdade de Economia da USP), fundado por estudantes da própria faculdade, não cobra mensalidade, mas cobra uma taxa de matrícula bastante acessível e conta com um processo seletivo que consiste em uma prova e uma entrevista sócio-econômica. 

Porém, o Projeto Emancipa me parece ser o movimento social de cursinhos que mais cresceu nos últimos anos. O cursinho é totalmente gratuito e não conta com um processo seletivo, apesar do número limitado de vagas. A Rede Emancipa conta com centenas de alunos em São Paulo e seu foco principal é estimular o acesso de alunos de baixa renda à Universidade pública e às diversas faculdades particulares.

Pois bem, como disse, o foco principal do Emancipa (bem como de qualquer outro cursinho), como não poderia deixar de ser, são as Universidades Públicas. Esse é o sonho vendido por esses projetos sociais e é aí que começa o problema. A idéia subjacente a qualquer um desses projetos é muito simples: ela é meritocrática, ou seja, em teoria, basta estudar, basta o exercício constante, o esforço individual e todos serão recompensados com o acesso a uma Universidade Pública e, principalmente, terão acesso à tão desejada USP. 

O raciocínio, de uma ingenuidade bestial, que só se pode encontrar na adolescência mesmo, convence bem os alunos por sua própria simplicidade e também porque vai ao encontro das fantasias desses alunos. No caso do Emancipa existe na grade curricular dos alunos um horário específico para o debate de questões políticas onde as fantasias em torno da Universidade Pública são estimuladas. Em nenhum momento os alunos são confrontados com o “princípio de realidade” de que a USP reúne alguns dos melhores alunos do país em um processo seletivo (a FUVEST) considerado o 2º maior vestibular do planeta, que em alguns anos (2011, por exemplo) chega perto da cifra de 140.000 inscritos (estima-se que esse número poderá chegar a 180.000 inscritos até 2018), disputando cerca de 10.000 vagas apenas. Em resumo, e apesar do discurso meritocrático desses cursinhos (na verdade, de qualquer cursinho) a conta é simples: pouco mais de 7% dos inscritos ingressarão na USP. Os demais, engrossarão as filas de Unip, Anhanguera, Uninove, etc. E assim o sonho da universidade pública se converte em pesadelo. Trata-se de um cálculo matemático muito simples: basta aplicar uma regra de três aos números fornecidos pela própria Fuvest. 

Nesses debates políticos (e isso vale para boa parte dos cursinhos populares), orientados por um suposto marxismo e conduzido por alunos que mal acabaram de ingressar na USP (e provavelmente ainda nem leram Marx) são tecidas críticas ao neoliberalismo e ao modelo elitista das Universidades Públicas, etc. Até aí, nenhum problema. Tudo dentro da ordem. A questão é que a lógica subjacente da meritocracia absoluta não tem nada, absolutamente nada de Marxista. Afinal, não existe nada de mais estranho ao pensamento de Marx do que a suposição (burguesa e tola) de que o esforço individual é capaz de superar as condições objetivas, ou seja, o limite imposto pelas condições materiais. 

Por um estrabismo intelectual perigoso esse discurso “marxistóide” com cara mais de “existencialismo” ingênuo acaba por perpetuar os males que pretendia evitar: a alienação e a exclusão. Aquilo que esses debates políticos deveriam destruir – a crença quase delirante no poder da vontade e na autonomia do sujeito – são sustadas em nome de um discurso de “auto-ajuda” disfarçado de crítica social: tudo é possível, basta estudar. Neste mundo, estamos todos aptos a “escolher livremente”. Essa é a grande ilusão.

Essa lógica ingênua me faz lembrar de um trecho delicioso de Matrix Reloaded, dos irmãos Wachowski, onde o vilão Merovíngio dá uma verdadeira aula de “causalidade” e “escolha” para o trio de heróis Neo, Morpheus e Trinity. Enquanto o otimista Morpheus tenta definir as leis de ação e reação como uma questão de “escolha”, Merovíngio lhes aponta que a “escolha” seria uma “ilusão criada entre os que têm poder... e os que não têm”. O discurso de Merovíngio é mais marxista e verdadeiro que a tosca apologia meritocrática dos cursinhos, sejam eles populares ou não. 

Mas, contestar, desmistificar esse discurso com dados de realidade é considerado quase um sacrilégio, uma verdadeira reação neoliberal cuja intenção oculta seria desestimular os alunos ou conduzi-los ao suicídio e à depressão. Já tive um amigo que quase saiu preso depois de uma aula (sim, as alunas quiseram chamar uma viatura de polícia e abrir um boletim de ocorrência) porque disse aos alunos que mais da metade dos estudantes do país (incluindo os ali presentes) seriam “analfabetos funcionais”. É claro que ele precisou explicar antes o conceito de “analfabetismo funcional” cerca de 3 ou 4 vezes, até que os alunos entendessem e decidissem chamar a policia... Fiquei sem entender como um professor poderia ser execrado pelos alunos somente por apresentar uma realidade sem disfarces. Bem, minha intenção não é destruir o sonho de ninguém (não quero correr o risco de ser preso). E também não sou um simpatizante da direita conservadora: sou apenas um crítico da idiotice, seja ela de direita ou de esquerda. 

Sei o quanto é difícil discutir com alunos e professores desses cursinhos sem parecer conservador. Os professores, alguns, ignoram o problema. Outros o reconhecem mas optam por esconder dos alunos essa realidade. Os alunos, participantes desses grupos de discussão política, acham mesmo que, aos 17... 18 anos já seriam verdadeiros intelectuais capazes de emitir opiniões sobre qualquer assunto só porque assistiram meia dúzia de aulas de história ou leram a orelha de algum livro de Marx. 

Vivemos em um mundo onde todos se julgam capazes de emitir opiniões... e acreditamos que todas as opiniões tem o mesmo valor, o mesmo grau de verdade. Mas não é assim. Existem, como sabemos, opiniões plausíveis e informadas e outras delirantes e equivocadas. E não, elas não têm o mesmo peso. A opinião de um aluno de cursinho de 18 anos sobre a 1ª. Guerra mundial não tem o mesmo peso que a opinião de um historiador sobre esse mesmo tema. Um antigo professor da Unicamp tinha uma máxima deliciosa para responder aos alunos paspalhos do nosso tempo: “depois que o aluno concluir um mestrado, aí, talvez, ele tenha condições de emitir uma opinião que possa ser levada a sério...”. Antes disso, alunos de 18 anos não são “formadores de opinião”, são “absorvedores de opiniões” que devem ser estimulados e orientados por pessoas com mais experiência que eles. Deveriam escutar mais (para aprender algo) e falar menos. O que lhes falta é aquilo que falta a qualquer adolescente: um pouco de humildade. E eu diria mais: falta um pouco de noção também. 

Um dia, um colega professor em um cursinho de ponta, o Anglo, me confidenciou que achava “criminoso” o Anglo vender a alunos com nota média no ENEM de 500 pontos, no segundo ano de cursinho, a idéia de que eles conseguiriam entrar na Poli, na FAU, em Medicina ou em Direito na USP. Alunos que mal sabiam resolver uma equação do segundo grau depois de 1 ano de cursinho. Bem, a realidade dos alunos nos cursinhos populares é ainda mais grave. Muitos mal conseguem somar frações simples e solucionar uma equação do primeiro grau. Supor que seria possível reverter esse grau de deficiência em 1 ano, ou mesmo 2 ou 3 anos de cursinho é mais que otimismo ou ingenuidade: é ignorância psicopedagógica mesmo.

As experiências vivenciadas pelos seres humanos entre 0 e 6 anos de idade cumprem um papel crucial na sua formação acarretando marcas indeléveis em sua estrutura emocional e cognitiva (o que inclui a sua inteligência). E, como sabemos, esses estímulos iniciais são usualmente fornecidos pela família e pela escola. Pois bem, é nessa idade, onde muitas vezes a criança se encontra refém de uma família desestruturada e de uma escola descompromissada que ocorrem as principais mudanças na maturação (variação da estrutura e função das células nervosas), mudanças que acarretarão no futuro as condições de existência de mais (e melhores) conexões nervosas. E o sucesso (ou fracasso) qualitativo dessa maturação definirá a qualidade da formação de funções cognitivas (memória, raciocínio, atenção) e também afetivas. Tendo isso em conta, convém considerar que, quando o adolescente ingressa no ensino médio (e o cursinho se apresenta como um prolongamento deste) a parte mais substancial desse processo de maturação já ocorreu e muitas pré-condições para o desenvolvimento adequado de habilidades futuras já foram estabelecidas. 

Não me oponho aos cursinhos populares (ou a qualquer cursinho). Eles são um mal necessário. Mas acho que seus dirigentes deveriam ser mais cuidadosos e responsáveis na hora de criar ilusões em alunos já bastante carentes e fragilizados. De um modo geral os coordenadores desses cursinhos são muito jovens, tão jovens e inexperientes quanto os próprios alunos e contam com uma formação intelectual ainda muito incipiente. Muitos deles mal ingressaram na faculdade e sem qualquer experiência já se converteram (irresponsavelmente) em “pregadores” de verdades e certezas que muito provavelmente eles abandonarão na maturidade.

As potencialidades dos alunos desses cursinhos precisam ser exploradas de forma realista e esses alunos precisam se conscientizar de limitações que eles não geraram, mas que estão aí. E isso não significa “naturalizar” diferenças de classe, mas reconhecer que essa infeliz divisão acarreta problemas que não podem ser modificados apenas com a força mística da “vontade”. Aquilo que separa a imaturidade da maturidade é exatamente essa habilidade em lidar com frustrações e limites. Não vejo que tipo de bem poderia derivar da manutenção constante de ilusões que no final do ano serão obviamente desmascaradas. Supor que, neste mundo, basta força de vontade para vencer obstáculos intransponíveis é ilusão ideológica. Ilusão criada por aqueles que têm poder para controlar aqueles que não têm.


Richard Martins Kowalski

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